Tim Watcher foi o meu primeiro filme, uma curta-metragem de ficção com tanto de ambição como de ingenuidade.
Era o meu ano final como estudante universitário na ESAP, naquilo que foram três anos de bacharelato pré-bolonha dum curso com o estranho nome de Cine-vídeo, mais um ano de licenciatura com o extenso nome de Arte e Comunicação, Ramo Audiovisual.
Desde o primeiro ano do curso de Cine-vídeo que se dizia que os alunos fariam os seus próprios filmes. Uma boa intenção, mas executada com vício: pois se nos diziam que iríamos fazer os nossos filmes, o que se entendia por «nossos»?
Fazer um filme de ficção é um empreendimento colectivo. Mesmo para uma pequena curta-metragem muito simples, além do realizador é normalmente pelo menos necessário:
Ora, no meu curso resolvia-se assim a questão do tal esforço colectivo: cada aluno apresentava a sua ideia de filme à turma, e a turma votava nas melhores*. Uma, duas, ou até três curtas-metragens ganhavam, tendo os vencedores direito à realização, e os restantes estudantes a cargos tidos como acessórios. Como as escolas de cinema mistificam o cargo de realizador como o supremo autor, até o produtor se torna num vassalo do artista, um assistente pessoal encarregado de arranjar tudo o que Sua Majestade O Realizador precise.
Já se vê o que isto tem para correr mal: desde o primeiro ano se criava uma casta entre os alunos. Os primeiros que tivessem tido a sorte de terem sido os escolhidos para realizar as suas ideias (pois muitas vezes nem são propriamente argumentos), ficavam logo ali coroados. Tendo realizado um filme, assim justificam depois serem os melhores para serem votados nos seguintes, por cúmulo perpetuando a injustiça. Depois, havia os da outra casta, os outros. No final do curso, só os primeiros teriam feito um portfólio de filmes.
Por ter eu nunca realizado nada, e porque nenhum dos meus colegas estaria a fim de trabalhar no meu filme, pois estariam empenhados nos seus, para o meu ano final decidi fazer a minha curta-metragem com pessoas exteriores à comunidade académica.
Para a disciplina de projecto, o professor Ruiz pediu-nos um texto, donde agora retiro as minhas intenções de então. Estes textos feitos para entregar a professores para serem avaliados como tal tendem a não ser muito interessantes, e é certamente o caso deste. Ainda assim, para reconstruir a intenção tal como pensada antes da rodagem, daí retiro alguns trechos, truncados e reorganizados:
Tim Watcher [...] está em todo o lado para reparar num pormenor ligeiro nas situações negativas que acontecem às personagens do mundo real. [...]
Quando não encarna as vestes de cada uma das profissões que representa no momento em que presencia [cada] um daqueles momentos, usa uma gabardina e chapéu — símbolos do detective privado do cinema, aquele que observa e não é visto[,] aquele que discretamente resolve as situações mais delicadas dos seus clientes. [...]
É [também] o cowboy que limpa a cidade do mal e que desaparece ao pôr-do-sol [e] é Amélie que se vinga pelo empregado da fruta, e ajuda a hipocondríaca do café. É o forasteiro, e o justiceiro.
As suas roupas serão claras e terão iluminação branca [...]. Tim Watcher vai-se tornando cada vez mais numa pessoa real, tornando-se visível. [...] O Tim Watcher de cada das situações [...] é, na realidade, uma pessoa diferente [...]. No fim, a criança segue o espírito observador do lado mais ligeiro da vida, mas não enverga a máscara exterior Tim Watcher.
O texto tinha alguns fotogramas de ilustração: Jack Nicholson como detective em Chinatown, Humprey Bogart em The Big Sleep, um vaqueiro solitário, Amélie imaginando uma vingança, e vários fotogramas de The Limey. O texto alude ainda a uma cassete VHS com mais amostras, certamente também destinada ao professor Ruiz.
A pré-produção dum filme é tudo aquilo que é feito antes da rodagem. Quando a produção solicita a escrita de argumento a um argumentista, essa parte do processo inclui-se na pré-produção; quando um argumentista o escreve por conta própria, começa quando uma produtora o aceitar e iniciar as diligências para tornar o filme real. Creio ter começado a escrever o argumento só depois do início do ano lectivo, com a urgente vontade de acabar o curso com o meu próprio filme. Daí que tive pouco tempo para o amadurecer, desenvolver, e polir. É, portanto, um argumento feito a correr.
A minha intenção era construir uma personagem feita de consciência que habitaria o próprio tempo, que duma certa forma existe enquanto parte dum colectivo (tentar explicar uma obra de ficção é um exercício infeliz, e não o faria se o filme não tivesse falhado).
O argumento falha por algumas razões, nomeadamente:
Porque um purista da língua portuguesa deu ao seu filme um título em inglês? Na fase de rascunho, Tim Watcher servia de alusão a time watcher, um título temporário para me guiar na escrita. Seria, logo que finalizasse o argumento, substituído.
Só que naquela altura Portugal vivia o fervor da vontade de se anglizar. Daí que, quando apresentava esta reserva àquele que veio a tomar o título de produtor do filme, fui recebido com um:
— Gosto, gosto.
— Não, não estás a perceber – esclareci – isto é para mudar depois.
O que não aconteceu. O filme começou a ser divulgado com esse título.
Se apenas me resignei, ou se terei sido até persuadido em favor das razões para manter um título em inglês, já não me lembro. Só sei que passado pouco tempo me arrependi, e ainda hoje o nome me é indigesto.
Contactei por escrito instituições do Porto, tais como:
Transdev, para que eu pudesse filmar no Metro do Porto. Desde cedo que se mostraram receptivos.
Nessa simpática reunião que tive com eles na Torre das Antas, expliquei que seria preciso reservar uma carruagem inteira para as filmagens. Concordaram.A recolha de imagens está autorizada superiormente.
Agradecemos reunião breve para preparar, junto dos responsáveis da Operação, a recolha de imagens.Cumprimentos,
Nuno Ortigão✝
✝Público, 28 de Abril de 2021: Morreu Nuno Ortigão, autarca da Foz do Douro e antigo quadro da Metro do Porto.
STCP, para filmar num eléctrico. Enviaram tabela de preços muito cara. Não dei continuidade a este pedido, pois tinha já assegurado o Metro do Porto.
Edifício Península, pois era um prédio de fachada de vidro e cesto de limpeza (já não me lembro como se chama isto) como o que uma cena pedia. Foram negociações complicadas (com várias reuniões, e até um ponto onde alguém do Banco Alves Ribeiro intercedeu em favor das filmagens). Lá por fim o director aceitou.
Câmara Municipal do Porto, para me permitir filmar não só no interior da própria torre do relógio da Câmara, como na Biblioteca Pública Municipal do Porto, e até no Cemitério de Agramonte. Creio que foi em fase posterior, depois de ter recebido recusa do Teatro Nacional de São João para filmar na plateia, que lhes acrescentei também o pedido de filmagem no Teatro Rivoli. Aprovaram tudo o que lhes pedi, e foram irrepreensivelmente correctos e profissionais em todo o processo.
Vários hotéis do Porto. Todos se apressaram em recusar, uns sendo sinceros (não aceitamos filmagens), outros com desculpas («temos os quartos todos reservados», mesmo sem que eu lhes tivesse dito ainda as datas). O Grande Hotel do Porto da Rua de Santa Catarina aceitou.
Em parte, o filme foi escrito a partir da ideia do que seriam locais de rodagem que estariam próximos uns dos outros. Dizia a minha nota de intenções:
[...] O cemitério de Agramonte, os prédios de arquitectura contemporânea do Atlântico (Praça D. João) ou do Península, a torre da câmara do Porto [...] estão próximos uns dos outros.
Do prédio do BCP (cena 21, 22) e da esquina dos Aliados (cena 3) vemos a torre da Câmara (cena 7). Do cemitério (cena 15) vemos o prédio de escritórios (21, 22). Do prédio de escritórios vemos o teatro Rivoli (cena 9).
Assim crio no filme um universo contingente [e] também a sensação de que todos os episódios do filme ocorrem em simultâneo. Um universo contingente é uma característica típica de um conto de fadas. [...]
Onde se lê «Do prédio do BCP», deve-se entender o Edifício Atlântico. Especulo agora que terei adicionado «ou do Península» (ênfase em cor verde) em momento posterior, assim como a respectiva relação entre o cemitério e esse prédio de escritórios (também enfatizado).
Em produções de grande orçamento, são construídas réplicas para cinema. Numa baixa produção como esta, os adereços eram autênticos.
A Câmara Municipal do Porto emprestou um fato completo de funcionário de limpeza com as medidas do actor António Reis.
Da Polícia de Segurança Pública, veio um carro e uniformes. Nada foi gratuito, tendo de pagar o carro à hora, mais um agente para o levar e vigiar. Os uniformes tiveram de lhes ser comprados por mim mas, por razões de segurança, não poderiam ficar em minha posse. Pelos vistos, ficaram à sua guarda para sempre que eu deles voltar a precisar.
A Climex, empresa de limpeza, ofereceu à produção um fato completo, ainda que o administrador do Edifício Península tenha impedido que se visse a marca.
— Sabe, é que trabalhamos com outra empresa. Já viu, se o vosso filme mostra – diz, desenhando um grande arco no ar com a palma da sua mão – Climex, aqui, a limpar as nossas janelas? Era fazer publicidade à conta do nosso edifício.Assim, infelizmente tivemos de colocar um colete amarelo por cima da marca do uniforme gentilmente cedido pela Climex.
O Primeiro de Janeiro, jornal a quem pedi permissão para fazer uma primeira página original para o filme. Aí figuraria uma fotografia da cena final, com o protagonista caído no chão, para aludir ao tempo não linear, simultaneidade da existência da personagem, etc. Foram muito prestáveis, sem colocarem como condição obrigatória a de conhecerem o argumento ou aprovarem a cena.
Serve o presente para informar V. Exa. que podemos atender ao seu pedido. [...]
Se entender útil, gostarámos de visionar a cena em que aparece o jornal, antes de o filme estar concluído.
[...]
Manuela Coelho
Sec. Administração
Para um carro funerário, com urna, contactei algumas agências. Muito gentilmente, Nuno Pereira da Funerária das Condominhas, a 6 de Janeiro de 2003, aceitou. Provavelmente por terem os seus carros mais escuros, acabei por escolher a Funerária Pátria.
Para um uniforme de vigilante, para a cena do museu, pedi emprestado a empresas.
Lamentavelmente não poderemos colaborar nesta iniciativa, uma vez que, em situações anteriores semelhantes, e apesar de todas as promessas que nos foram feitas, a imagem da Securitas saiu prejudicada.
Como reconhecerá, tal situação é inaceitável.
Assim, decidimos, de futuro, não ceder a pedidos de empréstimo de uniformes, pelas razões adiantadas.
Por fim, a Prestibel emprestou um dos seus uniformes, o que foi particularmente acertado, pois era a exacta mesma empresa que fazia a vigilância do Museu.
Num telefonema com um representante da UPS, foi-me dito que haviam emprestado um uniforme e caixas a uma produção, para no fim terem visto a sua marca a ser usada por um assassino que, pelos vistos, até usaria caixas da UPS para guardar os membros decepados.
Outra empresa contactada foi a MRW, que imediatamente se mostrou disponível.
[...] foi com o maior agrado e interesse que recebemos a sua proposta para lhe facultarmos materiais MRW.
[...]
Desde já lhe posso adiantar que a sua proposta vai ao encontro da estratégia de comunicação MRW.
Da MRW veio ainda a possibilidade de me disponibilizarem um zepelim que tinham justamente para a captação de imagens aéreas. Naquela era ainda sem drones, como eu me entusiasmei! Só que a dada altura, recebo a notícia de que esse zepelim era afinal pertença duma empresa separada de fotografia e vídeo aéreo, e que por isso não estava afinal disponível de forma gratuita. Ficou a memória da boa vontade do meu interlocutor na MRW que achou que o poderia oferecer, assim como toda a sua irrepreensível disponibilidade para tudo o resto.
Acabei por me decidir em favor do uniforme da PostLog, então marca de correio expresso dos CTT, que entretanto tinha até tomado a iniciativa de mo enviar completo, às medidas do actor.
Uma parte de mim ficou sem saber o que fazer com a solidariedade de quem se ofereceu para atender a pedidos, possivelmente até com algum entusiasmo, a que depois não pude eu dar seguimento, tendo de lhes dizer que afinal não iriam fazer parte dum filme. Não é pouco disponibilizar serviços, marcas, e peças importantes da identidade das suas empresas, sobretudo quando muitas vezes as pessoas que atendem a estes pedidos têm de os defender internamente perante as suas hierarquias. Normalmente, estes usos de propriedades comerciais são feitos a troco de pagamento e garantias várias. A todos os que, a título pessoal e empresarial, me responderam de forma generosa, o meu eterno obrigado.
A ESAP tinha várias câmaras DVCAM que os alunos podiam requisitar, mas infelizmente tal não era fiável para uma produção como a minha: era habitual os alunos não devolverem o equipamento na data prevista. Assim eu arriscava-me a ter actores e locais de rodagem agendados sem possibilidade de os filmar.
Com a audácia de jovem estudante, atrevi-me a pedir equipamento emprestado a empresas. Ter-me-ia esquecido que havia pedido até à SIC, não fosse ter encontrado a sua carta de resposta na minha pasta de produção quando redigia este texto agora em 2021.
Entretanto, decidi-me a contratar um operador de câmara ou director de fotografia que tivesse equipamento próprio.
Não me lembro donde era o equipamento de som; creio que facilmente a maior parte, senão mesmo a totalidade, seria da ESAP pois, ao contrário do de imagem, pouca gente do curso lhe dava importância.
1 DAT TASCAM DAP-1 1 percha Beyer 1 microfone ½ shotgun Beyer MCE 86N(C) 1 microfone Audio-Technica AT825 stereo 1 microfone de lapela Beyer Dynamic 1 Rycote 1 suspensão elástica para microfone 1 auscultadores Senheiser 1 receptor Audio-Technica 1 emissor Audio-Technica
Coloquei anúncios em páginas como a Mandy, que na época era um sítio informal de anúncios, para procura de equipa técnica. Não sei se cheguei a publicar um anúncio num jornal da cidade, como o Jornal de Notícias ou o Comércio do Porto.
Também encontro agora nos meus arquivos uma candidatura de alguém que dizia estar a responder a uma mensagem dum newsgroup — seria do pt.rec.artes.cinema?
Recebi muitas mensagens de todo o país, e mais algumas de fora, mas acabei por seleccionar, na maioria, daqueles que moravam pelo Grande Porto.
Para director de fotografia, contratei alguém que tinha o seu próprio equipamento (e que, por acaso, até nem era do Porto).
Chamo-me Luis Coelho tenho 47 anos sou op.câmara com 22 anos de experiência,dezenas de séries feitas para tv e cinema trabalho actualmente na NBP na produção da novela Amanhecer.
Tenho câmara DVcam Sony pd 150-p e material de som ( perche c/ micro direcconal,micro emissor) alguns reflectores...
Posso alugar os meus serviços... [...]
Filmar com equipamento DVCAM permitir-me-ia montar o filme na Escola, onde havia leitores dessas cassetes digitais e computadores certificados Sony EditStation.
Da ESAP, apenas o meu colega Marco Miranda. Ele foi o assistente de realização.
Rodagem é o nome que se dá às filmagens; é a fase a que o público em geral atribui o processo de feitura dum filme, talvez porque é a única que lhe é comunicada em making ofs. Essas imagens de bastidores não são documentários de produção, mas imagens promocionais feitas pelas produtoras para ajudar a vender os seus filmes. Por isso, parecem essas imagens ter contribuído para uma percepção distorcida, por parte do grande público, do que é fazer um filme. Esclarecendo:
No caso deste filme, estavam de antemão tratados todos os agendamentos com locais de rodagem (como o Hotel, o Metro, o MNSR, e tudo o resto), e os respectivos actores e equipa necessária para cada dia e hora. Como normalmente nestas situações, havia planos B para o caso de chuva ou outros contratempos de força maior, mais dois dias no final do agendamento deixados para o caso de ser necessário repetir alguma coisa. Claro que, apesar desse seguro, não queria ter de repetir nada: tratava-se dum filme de baixo orçamento, e toda a extensão ao tempo e trabalho pedido parecia-me um abuso.
A rodagem levou apenas uma semana, tendo surgido à última da hora ainda um novo obstáculo, levantado pelo director da administração do Edifício Península: é que ele tinha constatado que a personagem estaria morta, e uma morte à frente do seu edifício não podia ser.
Outro problema foi aquele da cena da queda em INT. ESCRITÓRIO
. Aí, deveria ver-se alguém que limpava o vidro do lado de fora da janela e que, depois de constatar um par de meias de cor diferentes* de alguém que era despedido no seu interior, cairia mortalmente ao chão. Isto narrado assim textualmente é estúpido, mas na curta-metragem é ainda pior.
* Coisa que nem sequer é importante o suficiente para um filme, nem naquela altura (pois o tempo veio a trazer o gosto muito mais exuberantes que aqueles tons ligeiramente diferentes). Em vez disso, o que mais destoa na cena são as calças demasiado curtas.
Acontece que eu presumi que o interior da plataforma de limpeza de vidro permitiria que o actor nela se atirasse para trás. Presumi, porque na pré-produção nem a vi; não tinha tempo nem facilidade em pedir para a visitar, pois aquele equipamente era pertença do Edifício Península.
Quando surge o dia de filmagens, o actor António Reis, que ali admite ter vertigens, entra na plataforma com um operador que, na tomada de cena, se agachava para não ficar visível. Aquando da primeira tomada, o actor atira-se como pôde para o interior da plataforma, fazendo-a abanar. O operador diz-lhe: «Cuidado, olhe que isto não aguenta».
O resultado é uma segunda e última tomada, resultando numa queda não intencionalmente ridícula. O montador faz uma pequena acelaração para tornar a queda mais queda, apenas solidificando o ridículo. Creio que há uma vocalização adicionada também no som, mas nada poderia vir a salvar esta cena: faltou planeamento.
Ainda que os realizadores iniciantes, assim como alguns outros independentes, montem os seus próprios filmes, eu não queria fazer isso porque, entre outras razões, um editor externo:
Claro que se não encontrasse um montador, eu partia dum plano B: montá-lo-ia eu próprio na EditStation da ESAP. Felizmente, José Fernando Almeida convidou um conhecido seu, creio que da RTP, Rui Rufino. Eis o plano A.
O filme foi montado em Adobe Premiere para Windows. Além da montagem, colorizou-se as imagens para cores flurescentes, creio que em AfterFx, e acrescentou-se um brilho radiante — este último receio que excessivamente exagerado.
Rui Rufino aplicou muita atenção noutros pormenores invisíveis, talvez o mais invisível e o mais interessante foi ter colocado nuvens brancas e céu azul naquele que era um dia nubloso, com uma máscara em movimento para o actor. Isto em 2003!
No texto de intenções apresentado para a UC de Projecto, lê-se também que:
O som deve fazer fluir a história, sem informação supérflua. Assim, pretendo minimizar os ruídos ambiente, como o som do metro e ruído de rua, e maximizar a projecção das falas do Tim Watcher, do sininho mágico que sublinha a ocorrência duma situação observada, e doutros sons intencionais [...] como o estalar dos dedos.
O filme final será integralmente dobrado, pois Tim Watcher tem um discurso que se fragmenta em diversas localizações, que alterna entre voz off e falas sincronizadas. O ADR de todo o filme dará um tom consistente à entoação.
O texto do protagonista deveria ser sentido como um só, do princípio ao fim, quer como narrador exodiegético, quer como personagem endodiegética. Para tal, depois do filme montado, foi dobrado.
O actor António Reis lá tirou mais uma tarde do seu tempo para este filme, tendo chegado a um pequeno estúdio de aspecto precário, o que muito contrastava com a razão de os ter escolhido: o seu nome ambicioso — «Eurocanal». Por telefone, o único contacto que tinha tido com eles até àquele momento, eu havia acordado com eles um preço. Depois, no dia da dobragem, cheguei bem antes da hora agendada para a gravação de António Reis para lhes dar os materiais para a sincronização.
Ora, acontece que eles estavam aflitos com qualquer coisa. O seu computador não funcionava bem, o equipamento não gravava, qualquer coisa falhava, e os seus semblantes preocupados assim se prolongaram depois da chegada de António Reis.
Entre repetições de gravação por falhas técnicas, idas e vindas à cabina e à mesa de montagem, já frustrado, o actor lá me apanha à parte e pergunta-me em tom de desabafo:
— Onde é que os foi encontrar?
Eu, desprevenido, respondo literalmente:
— Nas Páginas Amarelas.
E António Reis sorriu, quase se riu, ao aperceber-se que também eu era um grande totó.
O resto daquela lista de equipamento de som acima citada tinha ainda, em secção «pós-produção», mais estes três elementos:
1 microfone Neumann U 89 Sound Forge 6.0 Soundscape
Não sei se o microfone era do estúdio de dobragem, ou se pertença pessoal de alguém.
A edição de som, sonoplastia, e mistura áudio foi feita por Francisco Leal. Dele, fiquei com a memória dum tipo meticuloso, que colocava muito pensamento em cada pequena acção — justamente o tipo de pessoa com quem gosto de trabalhar.
Dezembro de 2002: Primeiro contacto com a imprensa Comunicado de imprensa com o título, realizador, e protagonista do filme, com sinopse, e declaração excêntrica de intenções. Maio de 2003: Captação de material publicitário Realizadora de documentário de produção. Fotógrafa profissional para fotografias de cena. Julho de 2003: Segundo contacto com a imprensa Elaboração de kit de imprensa, com dados técnicos, nova sinopse, curiosidades, biografias, e fotografias de cena. Agosto de 2003: Sítio final na Teia Site com cartaz feito por designer gráfico profissional, imagens publicitárias, foto reportagem completa, trailer e making of em quicktime e streaming, ficha técnica e artística completa, curiosidades, notícias, recortes de imprensa. Encontro a hipótese deUma animação em exclusivo para a web com um argumento paralelo ao Tim Watcher, e o mesmo protagonista em desenho animado, complementará o filme e sublinhará a essência do conceito da história.Setembro de 2003: Estreia Evento a organizar. Actualmente em curso negociações com a administração do edifício Península (onde foi rodada uma cena) para projecção de trailer, making of, e da curta metragem em simultâneo com passagem de modelos e outros eventos promocionais do edifício Península. É possível que esta ideia possa ter sido do José Fernando Almeida: associar o posicionamento «espírito positivo» da campanha actual da Galp para exibir o filme na estação de serviço da Foz e outras, ou como patrocinador do evento de divulgação. De seguida: Distribuição Desde a estreia, durante um ano Inscrição em festivais de curtas-metragens nacionais e internacionais. Distribuição de tarefas por entre membros da equipa (assistente de realização, para os festivais do continente americano, realizador para os festivais da Ásia do sul, etc.). Submissão a selecções competitivas para beneficiar do apoio para a transcrição para 35mm. Candidatura a representação em agência de talentos criativos para a promoção e distribuição do filme em salas comerciais alternativas, como complemento de longas-metragens.
A página foi realizada por Nuno Martins, estudante finalista da FBAUP. Realizado em Flash, o seu conteúdo não é agora facilmente acessível, pelo que provavelmente não conseguirá ver o tal botão Entrar que pede o texto da imagem abaixo.
![]() |
|
Nos tempos dos DVD, havia uma tradição de os enriquecer com uma banda áudio onde poderíamos ver todo o filme ao som dos comentários do realizador (por vezes também com outras pessoas, como um produtor ou um actor). Nesse espírito, apesar do filme não estar disponível, deixo uns comentários para cada um dos seus planos, por ordem:
O GENÉRICO
começa estranho, pois foi mutilado nos primeiros segundos. Eu tinha começado com um A Escola Superior Artística Apresenta, mas os meus colegas na produção quiseram tirar isso, para não dar um ar «demasiado amador». Eu queria mantê-lo, até porque já tinha a noção de que o meu filme não estava perfeito, e anunciá-lo como exercício académico sempre me poderia fazer agraciar com a benevolência do espectador. Como eu não lhes dei esta razão, lá me retiraram mesmo o cartão inicial. A outra minha queixa sobre o GENÉRICO
, mas essa de minha inteira culpa, é ser excessivamente longo para uma curta-metragem. Tendo visto muito cinema americano, absorvi o seu formato, e quis reproduzi-lo fielmente, resultando num tempo de espera inicial desproporcional para uma curta-metragem.
Depois, o genérico transforma-se em INT. BRANCO
, que poderá representar o Céu. O desafio de filmar um fato quase branco sobre um fundo branco é daqueles problemas técnicos que muitos cineastas adoram.
Corta para EXT. LINHA DE COMBOIO
, também com intenção simbólica: pela ligação de pessoas (escolhi, como pormenor, incluir um poste de comunicações, onde se nota o símbolo de telefone), e pela ligação à história do cinema. De facto, quando pedi autorização ao que creio ter sido a REFER — não me lembro, e não conservo nos meus arquivos registo escrito — para ali filmar, a senhora com quem falei ao telefone generosamente aprovou-me o pedido com um: «Sim, nós até temos muitos pedidos de filmagens nas nossas estações. Pelos vistos vocês cineastas gostam muito de comboios». Talvez seja tudo culpa dos Lumière.
Depois da frase Mas já nos cruzámos
, corte para uma EXT. ESQUINA
, para embater com uma rapariga que deveria ficar na memória do espectador (ainda que a realização não garanta isso). Creio que foi a própria actriz Francisca "Kika" Rodrigues quem sugeriu aquele lenço para que a sua cor ajudasse o espectador a fazer a ligação. Tenho até a vaga ideia que Francisca Rodrigues, que contemplava nessa altura seguir os seus estudos em teatro, se apresentava como apreciadora de écharpes, tendo levado outros para a produção escolher.
Regressar ao INT. BRANCO
é acidentalmente chocante. Se é possível a visão humana adaptar-se dum fundo branco para uma imagem real (do plano 2 para o 3), onde o centro de atenção é a sua parte mais luminosa, ter de regressar para esse ecrã todo branco é um esforço ocular. Talvez devesse ter encontrado outra solução para intercalar os planos EXT. LINHA DE COMBOIO
e EXT. ESQUINA
. De resto, a animação a partir do título desmontado está gira.
Este fundo branco poderia ter sido filmado praticamente em qualquer lado onde desse para estender uns lençóis, mas foi filmado no Museu Nacional Soares dos Reis, antes da filmagem doutra cena nesse mesmo edifício.
Foi aqui também onde encontrei a direcção de actor que deu estilo às frases de António Reis.
Depois de ouvir ouvir de António Reis a sua primeira leitura das falas, dei-lhe a direcção, algo assim: fale não para a câmara, mas para o seu espectador. É só um, e é com ele que está a privar este seu segredo.
Noutras cenas, ao actor António Reis sempre que precisava de fazer ajustes, lembro-me de apelar à sua «cumplicidade» com o espectador.
Naturalmente, que o estilo e o mérito é todo de António Reis. Ainda hoje admiro a sua interpretação.
Tim Watcher sai para a direita do ecrã, como que descendo à terra para uma praia, o grande céu azul a fazer lembrar de onde veio. Até aí, tudo bem. Tem um relógio de bolso na sua mão, elemento claramente da rede semiótica do filme, ainda que tal devêsse ter sido mais embutido na história — por exemplo, ter Tim Watcher a olhar para o relógio por uma razão em concreto. O relógio abre e, antes que o espectador tenha tempo de processar essa imagem, a cena acaba.
E eis que António Reis é um vigilante de museu. O quadro servia como vaga alusão a um observador na escuridão, e o jornal O Primeiro de Janeiro não chegou a ter a capa personalizada (como descrito na Pré-produção). O cartão de vigilante, por outro lado, tem António Reis na fotografia passe, com a minha assinatura.
O interior da torre do relógio da Câmara Municipal ficou como imaginei, com os vidros do fosso para o elevador a reflectirem uma das faces, tornando os algarismos visíveis na nossa orientação. Esse plano poderia ficar melhor se se visse, e se desse para tirar, aquele cabo que aparece no reflexo, perto do «6».
Há um corte para um plano mais apertado, para Tim Watcher estalar os dedos sem o vidro na sua frente. No entanto, está filmado num eixo diferente; deveria ter sido filmado com a exacta mesma frontalidade que o plano anterior.
Um brinco cai num lavatório. Atrasar o movimento em pós-produção não é tão bom como ter sido filmado com o dobro dos fotogramas com a própria câmara, só que a Sony 150-P não tinha essa capacidade.
Eunice Basto vê o brinco que cai. Perfeito.
António Reis como espectador da nossa vida. No Teatro Rivoli, colocaram-nos à disposição todo o seu equipamento de iluminação, assim como quaisquer outros dos seus equipamentos, como máquina de fumo, com um técnico disponível para operar tudo. Tanta abundância de opções, tanto luxo, só que a cena pedia um único foco bem definido vindo detrás, como o de um projector de cinema.
Na Biblioteca Pública Municipal do Porto, Tim Watcher guarda uma memória nos seus arquivos. O meu problema é não gostar do plano picado. Não havendo lentes grande angular para captar o efeito de muitas gavetas, foi o que o operador de câmara arranjou, insistindo que era necessário também para revelar o interior da gaveta. Lembro-me de na própria filmagem não estar a gostar nada da composição, e de ao mesmo tempo não qualquer ter outra ideia. Faltou-me preparação para um plano que presumira fácil.
O actor Jorge Loureiro, sentado ao fundo duma mesa de reuniões. O local é o que era na altura o Banco Alves Ribeiro. A cena começa com um funcionário, preocupado, a olhar para algo. Não gosto do facto da câmara estar colocada ao centro da mesa, e não no sítio onde o patrão ou Tim Watcher (a revelar-se no plano seguinte) estava.
Dirigi mal o actor, e dirigi mal o operador de câmara.
E para onde olha o funcionário? Sob o ponto de vista absurdo — quê?, dum animal de estimação que por ali estava? — vemos o actor Jorge Falcão, aqui encarnando uma personagem de patrão, a assinar uma entrega de correio expresso (na própria sala de reuniões?). Então, ostensivamente, Tim Watcher olha para:
O que deveria ser uma braguilha desapertada. Só que, com as dificuldades que tal se notasse no plano, e depois de acharmos que estávamos a escarafunchar demasiado nas zonas íntimas do actor Jorge Falcão, decidiu-se pelo disparatado resultado de ter não a braguilha, mas o botão das calças despertado. O zoom parece ter sido adicionado em pós-produção.
António Falcão guarda a caneta, mas falta na direcção ao actor a instrução de o fazer tendo a intenção de retomar o diálogo com o funcionário, ou algo assim. Sem intenção orientada para o futuro, nota-se que o movimento é mecânico.
E lá se vai embora Tim Watcher, funcionário CTT/EMS/Postlog, com o actor a não ter ainda mais que fazer que não mexer nas suas mãos para sinalizar preocupação (tudo culpa minha, atenção).
Metro do Porto. Era desnecessário o metro estar acelerado em pós-produção.
Novamente, uma cena a começar por personagens secundárias. Por um lado, parece ser o estilo de montagem de Rui Rufino, e por outro parece ter sido por eu não ter filmado um plano geral. As figurantes são, da esquerda para a direita: Domitília "Tita" Santos, Ana Catarina Fernandes, e Bárbara Graça.
António Reis sentado com a personagem com quem esbarrou os ombros em EXT. ESQUINA
.
O momento de filmagem foi escolhido para que, durante a fala, a janela mostrasse aquela faixa de relvado no exterior.
E começa aquela que, para mim, é a pior parte do filme. É a razão principal pela qual renego o filme, e por isso proíbo, na máxima extensão que me é permitida pelos meus direitos de autor, a sua exibição. A pretexto de vingança (?), a actriz de piercings leva o insulto estúpido de ter ferrugem, de estar grávida e não saber (francamente), e... de não ter nada na cabeça (‽).
Isto é o exemplo mais falhado de alguém que queria fazer um comentário qualquer sobre assédio escolar e falhou. Duma certa maneira, com este argumento, quem acabou por fazer algo vagamente insultuoso para todas as actrizes que participaram nesta cena fui eu.
A actriz olha para António Reis, e...
Um sininho: justiça, ou mais violência?
O metro chega à estação, servindo de plano de corte para:
EXT. CEMITÉRIO
, com António Reis com o uniforme de limpeza da CMP.
Uma carrinha funerária passa por Tim Watcher.
A carrinha fúnebre deveria ter o pneu da frente esvaziado. Acontece que o dono da carrinha, quando nos viu a esvaziá-lo, mandou-nos parar: é que não queria trilhar o pneu. Compreensível, naturalmente. Eu não sabia disto, e foi mais um daqueles momentos da produção em que as coisas que eu precisava pareciam não querer se materializar.
Era mesmo intenção ter o prédio do Bom Sucesso no fundo. Por um lado, porque neste mundo de fantasia, o Porto é uma cidade contemporânea. Por outro, porque dali se poderia orientar que esta cena ocorre perto do Edifício Península.
Um dos problemas típicos dos filmes de estudantes é serem todos os actores e figurantes habitualmente jovens. Para evitar isto, ter figurantes exclusivamente de idade universitária no cortejo fúnebre, pedi aos meus pais para convidarem amigos seus e familiares para que aparecessem no dia e hora da filmagem desta cena vestidos de preto.
E eis o pneu, meramente... mole. O truque foi fazer a parte da fala em que diz «pneu furado» cair neste momento.
Outro problema é que este plano corta mal com o anterior. No anterior, o olhar do espectador estava na parte da esquerda, luminosa, onde estava o cortejo. Neste, na direita (e quase sem tempo para ver o pneu), ainda por cima em zona sombria.
São figurantes (lista ainda por confirmar): Adriano Pinto, Luís Valmont, Fátima Valmont, Sérgio Valmont, Agostinho Silva, António Moreira, José Aguiar, Laura Pereira, Mário Araújo, Mário Rosignol, Fernanda Almeida, Pedro Trigo, Paulo Canário, Susana Delfina, Benedita Trigo, Carlos Alves, Jana Schröder. Alberto Ribeiro conduziu a carrinha fúnebre da sua empresa. Obrigado a todos.
E onde colocar o sininho? Não houve um momento claro físico onde o sincronizar.
Começa a cena INT. HOTEL
, a do Tim Watcher canalizador. Quarto e casa de banho foram filmados graças à irrepreensível gentileza do Grande Hotel do Porto, na Rua de Santa Catarina.
Tim Watcher recupera o brinco que caiu no ralo. Ou seja, não deixa as memórias cairem.
E no que é que Tim Watcher repara, no cesto de roupa suja?
Cuecas brancas borradas. A aderecista Cristina Lucas fez-lhes uns belos, como se diz no Norte, selos.
Aqui começa outro problema (já nem vou falar da analepse feita de brilho branco): a realidade da cena de violência supostamente doméstica. Sei lá, nunca vi nenhuma (nem então, nem até à data), e não soube compô-la. Então o resultado é vermos Eunice Basto estática, numa cena onde não acontecia nada. Isto é: o estalo não foi o culminar dum evento com antecedente narrativo; foi o evento.
O outro problema deste estalo que flutua do nada é um de montagem de som. Também por culpa minha, não informei de que o som de discussão deveria ouvir-se durante a recuperação do brinco, para que tal justificasse. Estranhamente, não reparei nisto nem durante a montagem sonora.
Outro plano picado que não é do meu agrado...
E o brinco cai ao chão. Foi por isso que depois (sendo depois os planos anteriores 10 e 11), ao voltar a colocá-lo, a personagem o iria deixar cair pelo ralo. O que eu queria mostrar era uma forma de tempo não linear.
O agressor paga ao canalizador, o excelente actor Jorge Mota — outro actor de quem fiquei instanteamente a gostar. A sua voz, a sua postura... outro dos profissionais que presumi vir a trabalhar em breve, para nunca mais ter acontecido.
Entretanto mais sugestão não linear: Tim Watcher fala da casa de banho.
Aqui sim, um plano geral, e
para não furar a porta do hotel com um puinaise, um pouco de pasta colante foi colocada para que as cuecas se segurassem na porta.
Fora o estalo em si, acho que o resto da cena está bem concebida, com estes inúmeros planos bem coordenados. E, estranhamente, o som da discussão está correctamente presente nestes planos finais.
EXT. PENÍNSULA
, num plano de ar deliberadamente americano.
O empregado despedido tira da gaveta uma caixa de arquivo aparentemente vazia...
... colocando-a numa caixa de cartão, outra imagem do cinema americano, só que esta creio que acidental: não sei se na altura eu teria a noção que os despedimentos em Portugal têm pré-aviso.
O plano viola a regra dos 180º. O computador portátil era emprestado, e os gráficos no ecrã fui eu quem os fez a partir do Yahoo Finance.
Outro corte. Pelos vistos, na história, o computador não era da empresa. Vai para a caixa.
Tim Watcher limpa a fachada com... Ajax (não duvido das boas intenções do desenho de produção, mas...).
A janela da esquerda está entreaberta porque era preciso comunicar com o actor, e creio que os walkie talkies estavam descarregados ou algo assim.
Plano médio.
Plano apertado.
Plano apertado do empregado, com panorâmica vertical descendente.
Como as calças eram curtas!
Plano geral.
Tim Watcher continua a limpar. Há algo neste plano que falta: um cruzar de olhos, algo definitivo. A cena ficou difícil de filmar também porque do exterior, o vidro espelhado não deixava ver rigorosamente nada para o interior.
O empregado vai mais feliz por lhe terem constatado que tinha meias de cores diferentes (ou calças ridiculamente curtas).
Este é mais um exemplo do que acontece quando um argumento é escrito às três pancadas.
E, ainda por cima, eis o plano da vergonha alheia do espectador; e vergonha inteira minha. A «queda». Ver Rodagem acima.
Para cúmulo, vê-se o corrimão do bailéu a abanar.
Este plano é outra das razões firmes e definitivas para renegar este filme e proibir a sua exibição.
Fade out para preto, com som de sirene.
E finalmente, a última cena, a EXT. PENÍNSULA
. Começa com um plano geral, mas porque está este plano raquítico?
Porque presumi que iríamos ter muita gente para servir de figurantes, quando mais não fosse com pessoas que ali passam todos os dias. Só que filmar num Domingo às 09:00 deu nisto. Teve de ter toda a equipa de produção ao longo da fita. Há também um homem do lixo na multidão: é Tim Watcher que olha Tim Watcher caído.
Não percebo de medicina forense, mas Tim Watcher parece muito bem para quem caiu de tão alto. Não sei se não terá havido algum impedimento ou promessa de não haver sangue falso.
António Reis mais perto.
Olhem à volta.
Neste plano, a frente do Mitsubishi novo da PSP, uma fita da polícia, a fachada do Península, e a pequena Rita Petiz Direito encadeada pelo sol e por um realizador que não sabe realizar crianças.
Eis os dois uniformes de polícia que estão algures na PSP, envergados por Cristina Amaral e Alberto Magassela.
Outro plano mais apertado da Rita Petiz Direito.
E aqui outro pequeno problema: a ideia era a menina reparar que ficou espuma do café no nariz do polícia.
Por onde começar: pelo facto dos polícias portugueses não beberem café ao seu serviço (ainda por cima em frente a um cadáver), ou pelo facto do café português ser expresso e não um café para levar?
Não gosto da repetição do plano da menina. Deveria ser outro, como atrás do ombro.
Outra intercalação/repetição. O actor limpa a espuma do nariz com a sua mão, tornando clara a ideia da cena.
Eu deveria pelo menos lido sobre direcção de crianças actores. Idealmente, arranjado alguém especializado. Assim, a menina parece triste e constrangida, quando provavelmente estava só avassalada por toda a situação de filmagem.
Mais intercalação/plano repetido.
Outra vez o mesmo plano apertado do Tim Watcher no chão. Sendo continuação do ponto de vista do polícia, deveria ter sido captado no seu eixo e distância.
E cá está, outra vez o plano geral. O mesmo do início da cena.
Genérico final. Fim.
No final, acabei o ano lectivo com muito boas notas, ainda que não creia que uma média de curso alguma vez na história do cinema tenha servido para lançar um cineasta.
Incorrectamente convencido, pela socialização na ESAP, de que antes de tentar fazer uma longa-metragem deveria ter uma carreira a realizar publicidade, dediquei-me a planear esse caminho.
Mas donde tinha vindo a ideia de que um cineasta deveria começar pela realização de publicidade? A minha turma era de geração seguinte à do sucesso de José Pedro Sousa, aluno coqueluche da ESAP, que, depois do sucesso do seu filme Kuzz (2000), fora trabalhar para publicidade em Lisboa. Nos intervalos da ESAP falava-se dos cachês exuberantes que os realizadores ganhavam na indústria, e, a dada altura, parece que todos internalizámos a ideia de que era para aí que queríamos ir. Não pelo dinheiro, claro, nem porque não haveria mais sítio algum onde trabalhar, mas pela experiência; como se fosse esse o Caminho do Realizador. Assim era a nossa dissonância cognitiva.
Então, e o cinema?
Cinema era o que eu sempre quis fazer. Filmes mesmo.
Por um lado, com a produção cinematográfica em Portugal a ser assente em subsídios estatais, nunca se desenvolveu uma verdadeira indústria. Já nessa altura sabia que esperar para ser seleccionado pelo Instituto do Cinema e Audiovisual [e Multimédia, como então se chamava; conhecido na época como ICAM] é uma estratégia de carreira tão delirante quanto esperar pelo Euromilhões.
Certamente que não haver quase indústria não é a mesma coisa que não haver nenhuma. Aquilo que hoje se chama de mentoria é possível apenas com praticantes (professores universitários não dão mentoria; dão aulas). Não sei se foi em 2004 ou em 2005 que eu enviei o DVD do Tim Watcher juntamente com um argumento para outra curta-metragem para o produtor Tino Navarro.
Sem que ele pudesse saber, foi Tino Navarro o principal responsável pela minha ideia tonta de que poderia vir a fazer cinema em Portugal. Tinha sido ele quem produzira filmes portugueses de tão grande sucesso que até os tinha visto em Macau, nos anos noventa; filmes como Amor e Dedinhos de Pé (1992), Adão e Eva (1995), Tentação (1997), e outros. Ali, no outro lado do continente Euroasiático, eu fui um cinéfilo adolescente até ao momento em que, vendo cinema português contemporâneo, me terá nascido pela primeira vez a ideia de poder vir a ser cineasta.
E não é que, passados poucos anos de lhe ter visto os seus filmes em Macau, Tino Navarro me recebeu, em Lisboa, no seu escritório da MGN? Foi extraordinariamente correcto e atencioso comigo, e, de modo delicado disse-me algo como:
— Estive a ver o seu filme de final de curso, e por aí já dá para ver que sabe realizar. Mas olhe, em vez de fazer outra curta, porque não faz já uma longa-metragem?
Designo então de mentoria a exposição de Tino Navarro*, que apresentou a sua visão de que as curtas-metragens servem praticamente apenas para formação de cineastas, circulando apenas em festivais de cinema, e de que produzir uma curta-metragem dá pouco menos trabalho de produzir que uma longa (e eu bem tinha acabado de experienciar isso com a produção do Tim Watcher). Ficou combinado de eu tentar desenvolver uma longa-metragem. Não sei o que me deu, mas não consegui. Meses depois, Tino Navarro telefona-me para saber como estariam as coisas. É inexplicável como não correspondi à sua receptividade.
E o cineasta?
Os anos passaram, e o cineasta que durante fui durante uns meses ficou em dívida com aquelas pessoas que acreditaram em mim. António Reis, quando me recebeu no Teatro do Campo Alegre, começou por dizer que de cinema, só trabalhava com Manoel de Oliveira e pouco mais, para depois dizer que também iria fazer parte do meu filme
— Com uma condição: quando você tiver dinheiro para fazer o seu primeiro filme, promete que me contrata.
Prometi, mas nunca cheguei a fazer essa longa-metragem. Nessa medida, ficaram por cumprir as promessas explícitas e implícitas aos profissionais que trabalharam comigo na minha curta-metragem de final de curso.
Se ficaram por cumprir essas promessas a quem não me conhecia, ficaram também por se cumprir as expectativas que criei à minha família ao insistir em estudar cinema.
Quem sabe, pode ser que um dia venha a fazer uma longa-metragem. Ainda gostaria de voltar a trabalhar com algumas destas pessoas que conheci há cerca de vinte anos. O tempo que passou seria parte do filme, mesmo. António Reis teria uma função divina, e Jorge Mota seria o anjo, e outras personagens teriam avançado no seu caminho.
Como pontos positivos, o filme parece-me bem na melodia dos diálogos, e visualmente parece-me revelar uma visão de conjunto coesa. Não rejeito também haver algo no conceito da personagem que se exprime estritamente filmicamente, impossível de se exprimir verbalmente e, por isso, cinema.
No entanto, o filme partiu duma intenção não de fazer uma obra que resistisse ao tempo, mas de
Ora, não tendo objectivo de persistir no tempo, mesmo como obra temporária
Relativamente ao argumento, rejeito-o por
Por isso, repudio o filme e proíbo a sua exibição na máxima extensão que me é concedida pelas leis de direitos de autor.
Mas não digo que não aproveitaria o conceito inicial e, com as pessoas que trabalharam neste projecto, não pudesse fazer algo definitivo: a tal longa-metragem de que este filme foi o esboço.
Se tal não acontecer, não cheguei a ter sido o cineasta que pensei que seria. Se acontecer, estas não serão as considerações finais.
Texto em incompleto, em redacção, e não final.